Em 14 de Agosto de 2018, foi publicada a Lei nº 49/2018, que introduziu importantes alterações ao Código Civil português. Em causa está a aprovação do regime do maior acompanhado e a revogação dos clássicos institutos da interdição e da inabilitação.
No plano do direito, a regra é a de que todas as pessoas, em nome da dignidade que lhes é reconhecida, e como decorrência da sua capacidade de gozo que se lhes reconhece, têm capacidade de exercício. Porém, a capacidade de exercício, ao contrário da capacidade de gozo, só se adquire quando o sujeito perfaz dezoito anos, ou seja, aos menores não é reconhecida capacidade de exercício. Significa que, embora sejam titulares de direitos, os menores não podem exercê-los por ato próprio, carecendo de ser representados, em regra, pelos pais ou, em alternativa, pelo seu tutor.
Atingidos os dezoito anos, a pessoa adquire plena capacidade de exercício de direitos. Contudo, em 1966, o legislador entendeu verter no Código Civil nascente que, em determinadas situações, seria importante salvaguardar o sujeito contra si mesmo, contra a sua imperícia, contra a sua inabilidade, contra as suas fragilidades, retirando-lhe ou diminuindo-lhe a capacidade de exercício. As hipóteses ficariam contidas pela tipicidade dos fundamentos das incapacidades dos maiores, a dividir-se, segundo a gravidade, em interdição e inabilitação.
A evolução da estrutura social, a consciência da gravidade que as soluções referidas comportam para o incapaz e a influência de instrumentos de direito internacional ditaram que, paulatinamente, fosse questionada a bondade da solução consagrada no Código Civil. Esse processo reflexivo, com vários tipos de intervenções desde 1999, culminou com a aprovação, pela Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, do regime do maior acompanhado e a consequente revogação do regime da interdição e da inabilitação.
1 – As fontes jurídicas do Regime do Maior Acompanhado
Há muito que várias instâncias internacionais vêm tomando posição sobre a valorização da autonomia e da dignidade das pessoas com algum tipo de deficiência ou incapacidade que afete a sua capacidade jurídica.
Num plano mais recente, importa referir a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009, de 30 de Julho), bem como o respetivo Protocolo Adicional, adotado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de Março de 2007 (e aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 72/2009, de 30 de Julho).
Neste contexto, já antes a Recomendação (99) 4, do Conselho da Europa, adotada em 23 de fevereiro de 1999, proclamou alguns princípios aplicáveis à proteção de adultos incapazes, entre os quais os da flexibilidade, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade, princípios esses que mais tarde a Convenção de Nova Iorque veio também a acolher e sublinhar.
Efetivamente, logo no seu artigo 1º a Convenção estabelece como seu objetivo o de «promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente». No artigo 3º verte os princípios que norteiam a Convenção, à cabeça dos quais, precisamente, «o respeito pela dignidade inerente, e autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas» (alínea a)).
Na Convenção de Nova Iorque, importa ainda destacar o artigo 12º, que tem por epígrafe “Reconhecimento igual perante a lei”, onde se postula:
1 – Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.
2 – Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida.
3 – Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.
4 – Os Estados Partes asseguram que tomam as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efetivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo período por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afetam os direitos e interesses da pessoa.
5 – Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.”
Este é o preceito que mais diretamente bulia com as disposições existentes no Código Civil português sobre a interdição e a inabilitação.
A Proposta de lei nº 110/XIII, apresentada pelo Governo, a qual veio a culminar na Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, veio dar cumprimento às obrigações assumidas pelo Estado português neste âmbito.
2 – Breve alusão às alterações legislativas no direito comparado próximo do português
No direito alemão vigora o chamado “acompanhamento”, através dos §§1896 a 1908 do BGB, introduzido pela reforma de 1990/1992, a qual aboliu a interdição e substituiu a tutela e a curatela pelo regime do acompanhamento.
No direito francês, a reforma operou-se através da Lei nº 2007-308, de 5 de março de 2007, constando dos artigos 425º a 515º do Código de Napoleão. Entre as várias medidas de proteção, o art.º 433º consagrou a sauvegarde de justice, e os artigos 477.º e seguintes o mandat de protection future.
O direito italiano, por sua vez, adotou a Lei nº 6/2004, de 9 de maio de 2004, tendo instituído a chamada amministrazionedisostegno (artigos 404 a 413 do Codice Civil).
Quanto à Espanha, por força da Convenção das Nações Unidas, o legislador abandonou o emprego do termo “incapacidade”, substituindo-o pelo de “pessoa com capacidade judicialmente modificada”, sendo de mencionar a Lei nº 26/2011, de 1 de agosto, o RD-Leg. 1/2013, de 29 de novembro, e, por último, a Lei nº 15/2015, de 2 de julho.
Ainda uma referência ao Brasil, que pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, instituiu a “Lei Brasileira de inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)”, a qual alterou, entre outros, o Código Civil de 2002.
3 – Principais aspetos do novo regime entrado em vigor em 11 de fevereiro de 2019, por força da Lei nº 49/2018, de 14 de agosto
O novo regime do Maior Acompanhado está vertido nos artigos 138º a 156º do Código Civil, em substituição dos eliminados institutos da interdição e da inabilitação.
Quem pode beneficiar das medidas de acompanhamento?
A isto responde o novo artigo 138º, ao atribuir esse benefício ao “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.” Estamos perante requisitos de duas naturezas: uma atendendo à causa – razões de saúde, deficiência ou ligadas ao seu comportamento; outra ligada à consequência – a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou se, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
Quem pode requere tais medidas? Quando? A quem compete a escolha e a decisão? E quem pode ser o/a acompanhante?
De acordo com o artigo 141º, a própria pessoa que necessita de ser acompanhada pode requerer o acompanhamento, tal como o cônjuge, o unido de facto ou qualquer parente sucessível, desde que autorizados pelo requerente – salvo se o tribunal suprir a autorização do beneficiário -, bem como, independentemente de autorização, o Ministério Público.
Aqui releva a vontade do acompanhado, o qual, diferentemente do que sucedia com os interditos e inabilitados do anterior regime, não só pode requerer a medida como lhe compete, em princípio, autorizar outras pessoas a fazê-lo.
Tal como sucedia anteriormente, é o tribunal que decide se há ou não lugar ao regime do acompanhamento. Mas agora, manda a lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e diretamente, o beneficiário, competindo depois ao tribunal definir as medidas adequadas em cada situação concreta.
Quanto à questão de saber quem pode ser o/a acompanhante, o nº1 do artigo 143º determina que o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal. Isto significa duas coisas: a preocupação pela vontade do acompanhado e, nas situações mais graves, continua a vigorar o instituto da representação, quando estamos perante uma verdadeira incapacidade de exercício.
Na falta de escolha, o nº2 do mesmo artigo apresenta uma lista de pessoas que podem ser designadas, segundo o critério de quem “melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”.
Esta preocupação pelo bem-estar e recuperação do acompanhado está também presente nos deveres de cuidado e diligência que, na “concreta situação”, o acompanhante deve respeitar (art.º 146º).
Em que consiste ou se traduz o acompanhamento?
A resposta está no artigo 145º do Código Civil: flexibilidade no regime a adotar de acordo com o caso concreto, sempre que possível deve ser respeitada a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação, limita-se ao necessário ao necessário e permite ao tribunal escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam alcançar os desígnios de bem-estar, a recuperação e o exercício pleno da sua capacidade de agir.
Tudo isto sem cair na posição irrealista de ignorar as situações graves, aquelas de absoluta incapacidade do necessitado, daí que sendo o acompanhamento um modelo de apoio e assistência, em casos-limite, promoverá medidas de substituição.
Sempre em função do caso em presença, pode o tribunal sujeitar o acompanhante a algum ou alguns dos seguintes regimes: exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir; representação geral ou representação especial; administração total ou parcial dos bens; autorização prévia para a prática de determinados atos ou categoria de atos; intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas. Há sempre necessidade de autorização judicial prévia para os atos de disposição de bens imóveis (nº 3 do artigo 145º)
Decorre, pois, do acima dito que, em conformidade com o disposto no artigo 145º, o acompanhamento pode envolver uma representação legal (nas situações mais graves), assim como pode implicar o recurso à assistência, mediante autorização do acompanhante para a prática de certos atos, ou consistir num mero apoio deste à atuação do acompanhado, como sucede nas situações contempladas na alínea e) do nº 2 do artigo 145º.
4 – Atos do maior acompanhado
O maior acompanhado pode, em princípio, praticar livremente tudo o que se designa por negócios da vida corrente e o exercício de direitos pessoais, designadamente o direito de casar, de procriar, de perfilhar, de adotar, de cuidar e educar os filhos, etc. (artigo 147º).
Quanto ao internamento do maior acompanhado, prevê a lei que o mesmo depende de “autorização expressa do tribunal”, podendo, embora, em caso de urgência, ser imediatamente solicitando pelo acompanhante, sujeitando-se, neste caso, à ratificação do juiz (artigo 148º). Embora a letra da lei não o diga, deve entender-se que a norma abrange o internamento por razões de saúde, num hospital ou clínica particular, como o internamento em lar.
E quanto aos demais atos praticados pelo maior acompanhado? O que acontece se ele celebrar um qualquer negócio em violação das medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar pelo tribunal?
Tal como anteriormente, há aqui que distinguir três situações. Tais atos são anuláveis, sem mais, se forem praticados após o registo do acompanhamento (artigo 154º, nº1, alínea a)); são também anuláveis os que forem praticados depois de anunciado o início do processo, mas só se o acompanhamento vier a ser instaurado e se tais atos forem prejudiciais ao acompanhado; finalmente, quanto aos atos anteriores ao anúncio do início do processo, aplica-se o regime da incapacidade acidental (artigo 154º, nº 3).
Importa ter em consideração para este efeito, que as decisões judiciais de acompanhamento devem ser oficiosamente comunicadas à repartição do registo civil competente a fim de serem registadas (artigo 1920º-B), não podendo tais decisões ser invocadas contra terceiros de boa fé enquanto não estiverem registadas (artigo 1920º-C), por força da remissão operada pelo artigo 153º, nº 2, pese embora as cautelas com que o nº 1 desta norma rodeia a publicidade a dar ao início, ao decurso e à decisão final do processo, limitando-as ao “estritamente necessário para defender os interesses do beneficiário ou de terceiros”.
A lei prevê que o acompanhamento cesse ou se modifique mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou modificação das causas que o justificaram (artigo 149º, nº1), sendo certo que, enquanto estiver instaurado, o tribunal deve rever as medidas concretas decretadas periodicamente, em conformidade com o que constar da sentença, no mínimo de cinco em cinco anos (artigo 155º).
5 – Conclusão
A Lei nº 49/2018, que instituiu o Novo Regime do Maior Acompanhado, veio dar uma resposta positiva à necessidade de afirmação dos direitos das pessoas com algum tipo de deficiência ou debilidade, circunstancial ou permanente, mudando o paradigma legal. Afasta-se do modelo de tomada de decisão por substituição, escolhendo antes o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e ao apoio. “Proteger sem incapacitar” é a palavra de ordem do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. Em suma, passou-se do modelo rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, por um regime mais flexível e monista, de acompanhamento e apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação.
José Castro Guimarães
Advogado