O falecimento do poeta Nuno Judice, faz agora uma semana, poesia com que regularmente me alimento, e o visionamento do filme que designarei como de registo cinematográfico “A Flor do Buriti”, empurrou-me mais uma vez, e sempre, para refletir sobre a questão da condição humana.
“A Condição Humana” é o título de um livro escrito por André Malraux, um existencialista, que teve a sua primeira publicação em 1933, mas que só conheci no início dos anos 70, numa tradução do escritor português Jorge de Sena. No final da adolescência, esta leitura marcou-me para todo o sempre, porque me deu a possibilidade de fundir o conceito de humanismo com o de progresso na condição humana, e fixar essa linha como a que separa o aperfeiçoamento da espécie dos humanos do caminho para a sua destruição e extinção.
A condição humana suporta-se no tempo e forja-se na comunhão e partilha de esforços, o oposto do conceito de competição, um estímulo poluente em qualquer área da organização social dos humanos, e que no seu grau elevado leva à guerra. A ideia de tempo humano é o que nos fará aqui juntar um dos mais antigos poemas do poeta Nuno Júdice, “Princípios”, ao filme “A Flor do Buriti”.
PRINCÍPIOS
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exatamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
Viver, o tempo de viver, base da condição humana, é noção absoluta e relativa da ideia de tempo na espécie humana. O tempo não existe fora de nós, das nossas memórias, da nossa ideia de futuro. O tempo, objetivamente tratado, abstratamente conceptualizado, só se torna compreensível quando é subjetivamente apreendido em cada um de nós a cada momento.
O que este belo poema nos aporta é que somos vida, agimos sempre na dimensão do desejo de ser; esse é o tempo humano, o tempo de viver. É bom relembrar as palavras do poeta.
O tempo humano é hoje algo que não é atendido, que não é praticado, tendo o seu corolário mais visível na comunicação virtual “instantânea” que se faz nas redes sociais e televisões, que se extingue no momento em que acaba de ser verbalizada. É a verdade do “momento”, porque no tempo comunicacional não cabe a análise histórica ou contextual do afirmado, não cabe a validação de parâmetros, não cabe a reflexão sobre consequências, não cabe a lupa do saber, seja ele resultante do conhecimento ou da experiência humanas.
Também o filme “A flor do buriti”, dos realizadores João Salaviza (português) e Renée Nader Messora (brasileira), ao retratar o modus vivendi do povo indígena Krahô – hoje reduzido a menos de 3.000 pessoas confinadas a habitar entre os rios Manoel Alves Grande e Manoel Alves Pequeno, afluentes da margem direita do Rio Tocantins, na floresta brasileira, em resultado da pressão dos poderosos fazendeiros dos territórios vizinhos, a quem foi permitido transformar florestas em áreas de pasto para o gado bovino, a quem foi permitido massacrar e assassinar população indígena que quer manter a sua organização social e cultural, sempre em nome da rendibilidade da atividade económica – fala também do tempo humano, e em múltiplas vertentes.
O filme retrata a importância do tempo daquela e naquela comunidade. Desde logo, na vontade própria dos Krahô em preservar no tempo os usos, os costumes, a organização social e cultural dos seus antepassados. O que não significa que sejam atrasados ou que recusem o acesso ao que a sociedade do conhecimento lhes pode dar. Preservação que depende acima de tudo da possibilidade de manter o seu ecossistema natural e da conservação do seu território. Só o preconceito reinante nas sociedades leva à imposição da aculturação destes povos, entendidos como empecilhos aos interesses económicos dominantes.
Depois, reflete o tempo como ritmo da própria vivência individual e comunitária quotidiana. Aquele povo tem um uso próprio do tempo nas relações do seu dia a dia, um pulsar e um sentido naturais onde, prevalecendo a vida em comunidade, a importância do tempo do eu no outro é inequívoca – a ajuda e a partilha não precisam de ser pedidas nem são dadas, é inerente à sua humanidade, a competição não faz parte dos estímulos nas relações produtivas daquela sociedade.
No passado, o ataque ao modo de vida do povo Krahô foi feito pelos missionários, como Frei Rafael de Taggia, que em 1848 foi para lá enviado para catequisar e os concatenar no aldeamento de Pedro Afonso, entretanto criado, para deixarem as terras livres para os fazendeiros pastarem o seu gado.
Hoje, esse preconceito materializa-se pelo cerco político económico com medidas a favor de outras modos de organização mais lucrativos na região, como a dos criadores de gado, pela desvalorização social da sua organização, pela visão cultural discriminativa teledifundida e vertida nas redes sociais, sempre comprometidas com os valores inerentes a uma sociedade vergada ao conceito de negócio, confundindo estímulo com produção, o que fundamenta a máxima ‘tempo é dinheiro’.
Lembramos que a espécie humana acabou por se distinguir e autonomizar das demais, pela sua destreza psíquica e física tendo como estímulos base a organização social e a capacidade de sentir e pensar e não devido a quaisquer outros.
No mundo atual, o tempo comunicacional e que contagia o ritmo vivencial não é um tempo favorável à humanidade, antes impede o seu progresso e anuncia as trevas, porque cerceia a inteligência e a racionalidade.
A vivência do tempo no quotidiano está comprimido, levando à ansiedade permanente pelo momento seguinte, à profusão da ignorância e da incompetência independentemente das maiores habilitações escolares. O método de pensar e de fazer ciência – uma relação permanente e dialética entre a experiência e a reflexão – passa a ser um património privativo de minorias intelectuais e profissionais, criando uma barreira intransponível com os restantes cidadãos colonizados pela cultura alienatória do instantâneo.
Mas, atenção, as novas tecnologias em si nada têm a ver com este problema. As novas tecnologias e a Inteligência Artificial permitem mais conhecimento, aplicação técnica mais aperfeiçoada, são ferramentas úteis ao conhecimento. Não podemos culpar as novas tecnologias em si pelo uso que fazemos delas, por transformamos fontes de informação e ferramentas de procura em respostas imediatas, sem prévia análise, estudo ou tratamento. Sem pensamento não há espécie humana.
24/03/2024
jcg